Maria Helena Souza Patto nasceu em 17 de junho de 1942, em Taubaté, cidade situada no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. Segunda entre quatro filhos, Maria Helena vem de uma família de classe média. Seu pai foi proprietário de uma pequena fazenda em Taubaté. Sua mãe, depois de casada, assumiu integralmente os cuidados da família e dos filhos.
Parte de sua infância foi vivida na fazenda, de forma simples e confortável. Ali, aprendeu a ler, antes de entrar na escola, pois acompanhava atenta a mãe ensinando o irmão mais velho, logo tornando-se sua aluna.
Também foi nessa época que seu olhar encontrou a desigualdade social pela primeira vez. Seu relato registra-se como retrato tocante para ela: crianças muito pobres, em frente a casebres paupérrimos, e mais adiante os pais trabalhando nas plantações de arroz. O nome do quadro embebido de mal-estar foi dado pela avó materna, uma mulher baiana de esquerda que aguçou seu olhar crítico, apontando que aquela cena retratava a exploração.
Com seis anos, a família mudou para São Paulo, instalando-se em Tremembé da Cantareira. Na mesma época, chegavam para morar na parte mais pobre do bairro migrantes nordestinos que fugiam da miséria e buscavam trabalho. Embora pequena, Maria Helena notou a desigualdade estampada entre duas realidades – a de sua família e a das famílias mais pobres, a sua infância e a infância das crianças mais pobres –, remetendo-a às conversas com a avó.
Maria Helena ingressou em uma escola pública já alfabetizada, para cursar os quatro anos do ensino primário. Na época, em sua turma só havia meninas. Tendo uma relação de identificação com amigas migrantes com quem brincava, ela foi tocada pela forma como as professoras tratavam suas colegas mais pobres e negras, bastante distinta da maneira como ela, tida como uma das melhores alunas da turma, era tratada, experiência que marcou sua vida.
Cursou um ginásio particular entre 1953 e 1956. Embora a mistura de gêneros já fosse possível, o mesmo não se pode dizer em relação às classes sociais, pois as famílias pobres não podiam pagar as mensalidades. O mesmo corte elitizado foi vivido no colegial, cursado nos últimos anos da década de 1950 no Mackenzie. Optando pelo clássico, Maria Helena lembra que foi aluna de Alfredo Bosi, experiência muito significativa em sua vida.
Aprovada no processo seletivo na USP, Maria Helena iniciou a graduação em psicologia em 1961, estudando na Maria Antonia. Ela tece críticas ao curso, ao mesmo tempo em que relata que teve bons professores, dentre os quais destaca Florestan Fernandes, um dos poucos autores citados desde a pesquisa de Mestrado que sobrevive em sua bibliografia básica ao longo de toda sua produção, havendo mesmo um texto dedicado a pensar a obra do autor.
Tão logo se formou psicóloga, em 1965, Maria Helena passou a compor o quadro docente da Faculdade. Uma curiosidade da época é que ela foi consultora do programa infantil Vila Sésamo.
Já professora, cursou o Mestrado entre 1967 e 1970, sob a orientação de Romeu de Moraes Almeida. Intitulada Privação cultural e educação pré-primária, a pesquisa foi publicada em forma de livro em 1973. Nela, transparece ao mesmo tempo a preocupação com a desigualdade escolar e o olhar embaçado pela ideologia dominante na compreensão do fenômeno. Maria Helena sempre ressalta que o que vem depois em sua trajetória é uma ruptura significativa em sua visão de mundo sobre o tema.
Nos anos seguintes, as trilhas de sua produção intelectual, ainda conectadas com a desigualdade escolar, tomaram outra direção em relação ao mestrado, pondo o debate em outros termos, que aprofundaram a compreensão crítica do fenômeno. A inconsistência dos discursos (dos) dominantes passa por sua crítica voraz, curtida no estudo teórico e na sua sensibilidade para cenas colhidas na vida social. Afeita ao exercício da autocrítica, ao longo de sua trajetória Maria Helena repensa e busca atinar uma compreensão mais densa das desigualdades que caracterizam o Brasil.
Maria Helena cursou o Doutorado entre 1977 e 1981, sob a orientação de Ecléa Bosi. Considerado marco na virada de sua produção intelectual, a tese, intitulada Psicologia e Ideologia: uma introdução crítica à psicologia escolar, foi publicada em forma de livro em 1984.
Entre os anos de 1983 e 1989, Maria Helena compôs o quadro de pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas, realizando diversas pesquisas no campo educacional. É nessa época que ela lança aquela que será reconhecida como sua pesquisa de maior impacto: a aclamada tese de Livre-Docência, defendida em 1987 e publicada em forma de livro em 1990, intitulada A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. O livro foi premiado pela APEOESP em 1995 e consagrado clássico por vários autores. Em 2015, marcando 25 anos, foi lançada a quarta edição, revista e ampliada.
Em sua trajetória acadêmica, Maria Helena Souza Patto destacou-se como pesquisadora dedicada ao estudo crítico da psicologia e da educação no Brasil. No foco, ganha relevância o estudo da história da educação e da psicologia, com ênfase no papel exercido na consolidação de olhares e práticas preconceituosas; também dedica-se ao estudo da construção de políticas educacionais no miúdo do chão das escolas.
Como pensadores fundamentais em quem busca inspiração, é possível destacar Agnes Heller, Eric Hobsbawm, Franco Basaglia, Frantz Fanon, José de Souza Martins, Karel Kosik, Karl Marx, Marilena Chaui, Maud Mannoni, Pierre Bourdieu, Ronald Laing e Theodor Adorno.
Alia-se ao estudo teórico sua paixão pelas artes (literatura, teatro, cinema, música, artes plásticas), cuja articulação se faz presente em vários escritos. Por último, mas não menos importante, tão determinantes em seu pensamento quanto autores e artistas consagrados, figuram os ensinamentos de sua avó comunista e das várias pessoas em condição de pobreza com quem con-versou ao longo da vida, seja nas relações pessoais, seja na produção de pesquisas. O resultado de tantas influências é um trabalho autoral, criativo, original e engajado com a transformação radical da psicologia e da educação no Brasil.
Além da docência, Maria Helena orientou diversas pesquisadoras(es) de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, e compôs a banca examinadora de outras tantas. Autora ou organizadora de 11 livros, publicados entre 1973 e 2017, também publicou 29 artigos em periódicos acadêmicos (incluindo um texto publicado em uma Cartilha sobre Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia) e 34 capítulos em livros organizados por ela ou outros autores (incluindo prefácios, apresentações, introduções e um texto completo publicado em Anais de evento). No youtube, há 9 vídeos que registram diversas modalidades de fala da autora.
Aposentada pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo desde 2011, Maria Helena Souza Patto é considerada divisora de águas no campo da psicologia em interface com a educação, simbolizada no Troféu Paulo Freire de Compromisso Social, concedido pelo Sistema Conselhos de Psicologia, em 2000.
Maria Helena co-move. Sua força reverberou na área como um todo, abrindo fissuras, tanto no sentido de criar rasgos no manto sagrado da psicologia, quanto no sentido de instigar o desejo de mudança radical. De fato, a partir dos anos 1990, iniciaram-se movimentos caracterizados pelo esforço coletivo de tirar da psicologia escolar e educacional as explicações hegemônicas e psicologizantes, e construir e consolidar no Brasil novos rumos nas formas de entender o processo de escolarização e o papel da psicologia, afinando-se com os interesses das classes oprimidas. Longe de ser simples, tal movimento é marcado por contradições, avanços e retrocessos, como não poderia deixar de ser em uma sociedade dividida.
Nessa luta, a obra de Maria Helena Souza Patto não perde o vigor. No atual cenário da formação e atuação de profissionais da psicologia e da educação no Brasil, feito de imposições legais e tentativas de silenciar o debate, dominam a naturalização da vida humana e o esvaziamento da (auto)crítica – aliás, substituída por um autoelogio nonsense –, que se somam à prosa repulsiva dos ditames neoliberais, com requintes de crueldade em um país com a nossa história. Ainda que haja vozes dissonantes, a força conservadora (fora e dentro de nós) segue causando estragos à luta pela transformação radical da sociedade. Nesse sentido, o estudo da obra de Maria Helena, mais do que relevante, torna-se urgente. Por sua profundidade e radicalidade, ela dá robustez a discursos e práticas contra-hegemônicas nesses territórios, que estão em disputa.
Coerente com essa defesa, o objetivo deste Ambiente Virtual é garantir o acesso gratuito ao conjunto organizado da obra de Maria Helena Souza Patto, honrando sua trajetória e legado em vida. Que o material aqui reunido possa contribuir para que, como ela constantemente almeja, referindo-se a Drummond, flores continuem brotando no asfalto.
Uma flor nasceu na rua! Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego. Uma flor ainda desbotada ilude a polícia, rompe o asfalto. Façam completo silêncio, paralisem os negócios, garanto que uma flor nasceu. Sua cor não se percebe. Suas pétalas não se abrem. Seu nome não está nos livros. (…) É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. (Carlos Drummond de Andrade, A flor e a náusea )
Quem tem consciência para ter coragem Quem tem a força de saber que existe E no centro da própria engrenagem Inventa contra a mola que resiste Quem não vacila mesmo derrotado Quem já perdido nunca desespera E envolto em tempestade, decepado Entre os dentes segura a primavera (Composição: João Ricardo e João Apolinário)
Por Lygia de Sousa Viégas (2022).